Decreto da Prefeitura do Rio entra em rota de colisão com o Plano Diretor e acende alerta jurídico e urbano

O que parece “mero ajuste regulatório” virou um terremoto silencioso na vida de quem empreende, mora e planeja a cidade. Um decreto recém-publicado pela Prefeitura do Rio alterou regras de uso do solo e licenciamento de atividades de forma que, na prática, contraria diretrizes do Plano Diretor aprovado pela Câmara — e sancionado pelo próprio Executivo. Quando o decreto passa a restringir ou permitir o que a lei não determina, o resultado é insegurança: processos travados, investimentos sob risco e uma cidade que perde previsibilidade.
O que mudou
- Escopo do decreto: A norma foi editada para regulamentar usos e atividades à luz do novo zoneamento e do Plano Diretor, mas incluiu proibições e filtros que alteram o sentido da lei aprovada.
- Migração de cadastros: Houve substituição do antigo Cadastro de Atividades Econômicas (CAE) pela classificação CNAE, com lacunas para atividades típicas do cotidiano carioca (como casas de festas infantis), que perderam enquadramento claro.
- Novos critérios urbanísticos: Em áreas comerciais, surgiram filtros por metragem mínima de imóvel (ex.: 150 m²) que, além de não constarem do Plano Diretor, geram distorções e brechas.
Onde o decreto colide com o Plano Diretor
- Zonas ambientalmente sensíveis (ZCA-2):
Diretriz do Plano: controle caso a caso, com estudos de impacto e condicionantes.
O que o decreto faz: vedação ampla a atividades como casas de festa, esvaziando o instrumento de análise técnica e a ponderação territorial que a lei prevê. - Critério de metragem mínima em zonas comerciais:
Diretriz do Plano: compatibilizar uso e vizinhança por natureza da atividade e impacto gerado.
O que o decreto faz: usa o tamanho do imóvel como filtro universal. Efeito colateral: atividades potencialmente incômodas podem escapar do crivo adequado em imóveis menores, enquanto pequenos negócios ficam bloqueados em imóveis maiores — uma lógica que o Plano não adotou. - CNAE no lugar do CAE, sem transição:
Diretriz do Plano: integração com marcos nacionais sem perder especificidades locais.
O que o decreto faz: retira categorias típicas do ordenamento municipal do mapa de licenciamento, produzindo zonas cinzentas onde o empreendedor não sabe como licenciar atividades comuns. - Veto a pequenos comércios em áreas centrais (ZRM-1 da AP-1):
Diretriz do Plano: adensamento qualificado e mistura de usos para reativar o Centro.
O que o decreto faz: proíbe padarias, papelarias e serviços de bairro numa área que a lei quis reocupar, indo na contramão da vitalidade urbana.
Por que isso importa
- Hierarquia das normas: Decreto serve para regulamentar lei — não para reescrevê-la. Quando cria proibições ou condicionantes que a lei não previu, viola o princípio da legalidade e pode ser questionado judicialmente.
- Segurança jurídica: Licenciamentos podem ser negados ou autuados com base em regra frágil, acionando uma onda de ações, liminares e paralisação de investimentos.
- Impacto urbano real: O Centro perde comércio de proximidade; áreas sensíveis deixam de ser geridas por instrumentos técnicos (EIV, condicionantes) e passam a sofrer vedações genéricas; bairros inteiros veem portas fechadas para usos que o Plano quis ordenar — não eliminar.
O que a Prefeitura precisa esclarecer (e corrigir)
- Fundamentação técnica das vedações:
Pergunta-chave: por que substituir análise caso a caso por proibição ampla em Zonas de Conservação? Quais estudos embasam a mudança? - Critério por metragem mínima:
Pergunta-chave: qual a relação entre área construída e potencial de incômodo? Por que não utilizar parâmetros de impacto (carga viária, ruído, horários) já previstos em lei? - Transição do CAE para a CNAE:
Medida necessária: norma de transição que preserve categorias locais até que haja mapeamento completo para a CNAE, evitando “atividade órfã” no licenciamento. - Compatibilização com diretrizes do Centro:
Ajuste imediato: liberar os pequenos comércios de proximidade nas zonas residenciais centrais, com regramento de horário e carga/descarga, como faz o Plano Diretor. - Governança do licenciamento:
Ação coordenada: instruções normativas e manuais para servidores e contribuintes, garantindo leitura única entre Plano, decreto e zoneamento.
Próximos passos institucionais
- Revisão do decreto: Revogar ou reescrever os dispositivos que inovam contra a lei, com consulta pública abreviada e participação técnica de planejamento urbano e licenciamento.
- Mesa de diálogo com a Câmara: A Comissão de Acompanhamento do Plano Diretor deve apresentar o inventário de conflitos e acordar um cronograma de correções com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e o órgão de licenciamento.
- Nota técnica oficial: Publicar parecer consolidando a compatibilização artigo por artigo, para dar previsibilidade a quem está com processos em curso.
O que muda para quem empreende (e para quem mora)
- Para negócios em áreas centrais:
Atenção redobrada: verifique a zona (ZRM-1, AP-1) e, havendo veto a uso de proximidade, protocole pedido com base na diretriz de uso misto do Plano e peça análise vinculada à lei — não apenas ao decreto. - Para atividades em área ambiental sensível:
Estratégia técnica: apresente estudo de impacto e medidas mitigadoras, demonstrando aderência ao Plano; registre a divergência normativa para eventual tutela de urgência, se necessário. - Para projetos em imóveis menores que 150 m²:
Checagem de mérito: baseie o pedido nos parâmetros de impacto (tráfego, ruído, horários) e não apenas na metragem; peça fundamentação técnica se houver indeferimento automático.
Essência do problema
O Plano Diretor é o pacto de longo prazo da cidade; decreto é ferramenta de execução. Quando a ferramenta tenta reescrever o pacto, quem perde é o morador que precisa de comércio perto de casa, o empreendedor que investe no escuro e a própria Prefeitura, que se vê empurrada para o contencioso. Corrigir rápido não é questão de imagem: é de respeito à lei, ao planejamento e ao cotidiano de milhões de cariocas.