IBGE lança mapa-múndi invertido, com o Sul no topo
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) lançou nesta semana o mapa-múndi oficial, de forma invertida, que novamente tem o Brasil no centro do mundo, mas que agora traz uma nova perspectiva em que o Sul aparece no topo da imagem.
O lançamento é feito no ano em que o país tem ativa participação nos debates e perspectivas do Sul Global e do cenário mundial, em especial por presidir o Brics e o Mercosul e receber a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), em Belém, na Amazônia.
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O novo mapa também traz destacados os países que compõe o Brics, o Mercosul, os países de língua portuguesa e do bioma amazônico, a cidade do Rio de Janeiro, como capital do Brics, a cidade de Belém, como capital da COP30, e o Ceará como sede do Triplo Fórum Internacional da Governança do Sul Global – Novos Indicadores e Temas Estratégicos para o Desenvolvimento e a Sustentabilidade na Era Digital, em junho, em Fortaleza.
Em vídeo publicado no site do IBGE, a diretora de Geociências do instituto, Maria do Carmo Dias Bueno, afirmou que o Sul apontado para cima e o Norte apontado para baixo do mapa não constituem erro ou engano.
“Foi proposital. Afinal de contas, o apontamento dos pontos cardeais é uma convenção cartográfica e não se constitui em um erro técnico. Aliás, alguns estudiosos apontam essa questão da convenção norte-sul com tendo alguns vieses. Por exemplo, temos um viés sutil em que algumas pessoas, ao verem um mapa, com o Norte apontado para cima, atribuem questões boas e valores mais ricos a coisas que estão localizadas na parte superior do mapa. E, ao mesmo tempo atribuem coisas ruins, valores mais baixos de imóveis, e pobreza, a coisas relacionadas no mapa na porção inferior, ou seja, na porção sul do mapa”, afirmou Maria.
Segundo a diretora, há também um viés político relacionado a essa questão Norte-Sul.
“Como historicamente os primeiros mapas foram feitos majoritariamente por europeus, atribui-se a colocação da Europa na parte superior do mapa como uma questão de reforço da superioridade da Europa em relação aos países localizados na porção sul. Isso, na verdade, trouxe protestos dos países do Sul, principalmente dos latino-americanos. Gostaria de enfatizar que mapas são representações do mundo real. Os mapas podem ser bonitos ou feios, podem ser simples ou mais complexos, mas são sempre representações”, disse.
O diretor da Associação dos Geógrafos Brasileiros Seção Rio de Janeiro e professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Luis Henrique Leandro Ribeiro, lembrou que mapas são representações que expressam convenções, valores, visões de mundo e projetos.
“O mapa-múndi é, assim como outros, uma representação do mundo. Mapas também são convenções validadas pelos usos e aceitação de sociedades científicas, instituições de ensino, agências e órgãos públicos e privados, sobretudo, estatais. No Brasil, o IBGE é a instituição de maior referência e prestígio na elaboração e difusão de mapas. Recentemente publicou duas novas versões do mapa-múndi, uma com o Brasil no centro do mapa, e outra com essa mesma representação só que ‘invertida’. Ambos mantêm as projeções cartográficas usuais, mas adotando perspectivas distintas”, afirmou o geógrafo.
De acordo com Ribeiro, o fato de destacar cidades brasileiras com importantes eventos internacionais valoriza a posição e inserção altivas e de destaque do Brasil no cenário internacional e no contexto geopolítico atual de um mundo em ebulição, crises e transformações com disputas e, também, diálogos e concertações rumo a novos arranjos e relações internacionais.
“O mapa-múndi assim projetado gerou discussões e reflexões, mas, principalmente, ‘desnaturalizou’ e ‘descentrou’ perspectivas universalizantes e consagradas a partir de centros e países até então dominantes, abrindo novos caminhos para o Brasil e para o mundo a partir de novas representações e interesses geopolíticos. Afinal o centro do mundo está em todo lugar e, como nos ensinou o geógrafo Milton Santos, cada lugar é o mundo à sua maneira”, disse o pesquisador.
O professor Rafael Sânzio Araújo dos Anjos, do Departamento de Geografia da Universidade de Brasília (UnB), destaca que há 20 anos pesquisadores brasileiros já realizam mapas com essa nova perspectiva. “Em 2007, eu publiquei este mesmo mapa-múndi do IBGE pela UnB com um mundo de cabeça para baixo e um mundo com o Brasil no centro. A primeira constatação é que o IBGE está em um tempo, mas as pesquisas brasileiras estão em outro tempo. Isso mostra um gap. Esse mapa serve para a gente melhorar a nossa autoestima, é a autoestima da nação. O IBGE, ao trazer esta cartografia do Brasil no centro do mundo, mexendo no eixo Sul-Norte, é que dá oficialidade. Esse é o grande trunfo de uma publicação como essa, é oficial”, disse o cartógrafo.
O professor da UnB ressalta que as representações gráficas do mundo a partir do século 16 vão mostrar visões de terras conhecidas com os mapas orientados para o Polo Norte. “Os europeus nos impuseram o mapa a partir do século 16. A Europa moderna começa a fortalecer os seus estados. É quando ela inicia a diáspora e vai enriquecer com a África, com a América, com o Novo Mundo, e o Brasil está nesse bojo. As imagens aparecem como verdade. Desmistificar esse processo é muito importante. Uma boa maneira de fazer é mostrar uma outra imagem”, afirmou.
O professor do Instituto de Geografia da Uerj Leandro Andrei Beser lembra que mapas são meios de comunicação e que, ao longo da história, várias convenções foram tomadas como verdades ou como padrão e foram pouco questionadas. “Quando surge esse mapa-múndi clássico, em que a Europa está no centro, é um contexto em que a gente está falando da expansão marítima europeia com suas invasões. Ele tem o intuito de orientar as navegações. É uma visão eurocêntrica. Quando a gente consolida o sistema de ensino no século 19 e século 20, a gente acaba adotando esse mapa como padrão e ele acaba sendo inserido no sistema escolar. Virou o mapa oficial. Só que não há apenas essa maneira de representar o mundo. Essas escolhas dependem da visão de mundo do cartógrafo”, disse o pesquisador.
O cartógrafo destaca que o novo mapa-múndi quebra a visão colonialista e traz outras possibilidades de visão do mundo, levando para o mapa aqueles que foram invisibilizados, os países do Sul à margem do centro. “Esse mapa quer comunicar que o Brasil está hoje no centro do mundo em relação a inúmeras questões como líder do Brics, líder do Mercosul”, afirmou Beser.
Membros da Diretoria Executiva Nacional da Associação de Geógrafas e Geógrafos Brasileiros, o doutorando no Programa de Pós-Graduação em Geografia na Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Estadual Paulista (FCT/Unesp) João Pedro Pereira Caetano de Lima e a pós-doutoranda em Geografia na FCT/Unesp Carolina Russo Simon dizem que é mais comum encontrar mapas mundiais na projeção de Mercator e Robinson. A projeção de Mercator foi elaborada em 1569 por Gerardus Mercator (1512-1594) e a de Robinson foi elaborada em 1963 por Arthur Robinson.
Segundo os pesquisadores, a primeira projeção feita por Mercator foi elaborada essencialmente para apoiar a navegação marítima na época das grandes navegações, sendo apoio como mapa náutico. Porém, distorce as dimensões quanto mais longe for da linha do Equador. Por exemplo, basta observar que, em mapas com esta projeção, a Groenlândia parece ter maior tamanho do que o continente africano, o que não é verdade. Já a projeção de Robinson foi elaborada para minimizar essas distorções mencionadas, apresentando um maior equilíbrio entre a forma e área dos continentes. Essa é inclusive, uma projeção muito utilizada em mapas mundiais para livros didáticos.
“A projeção escolhida pelo IBGE para seu novo mapa-múndi é a projeção de ECKERT III, apresentada por Max Eckert-Greifendorff (1868-1938) em 1906, uma projeção que faz parte de um conjunto de seis projeções. É esta que está sendo utilizada pelo IBGE, uma projeção cartográfica adequada para mapeamento temático do mundo, pois representa o globo de forma mais equilibrada, distorcendo áreas polares. Ressaltamos que toda e qualquer projeção cartográfica possuirá distorções e não conseguirá ser completamente fiel à forma dos países e às áreas de oceanos e continentes. Isto porque a Terra possui um formato geoidal (arredondado, esférico, ovalado) e, portanto, representar o equivalente a uma esfera em um plano reto necessitará de ajustes”, explicaram os geógrafos.
Lima e Carolina destacaram que a principal vantagem deste novo mapa do IBGE é deslocar o pensamento e centralizar a América Latina, na figura do Brasil, para reforçar um posicionamento político de liderança. “A orientação “de ponta-cabeça” é uma inspiração do mapa do artista uruguaio Joaquin Torres García (1874-1949), que criou um desenho de um mapa chamado ‘A América Invertida’, em 1943. Nesta obra de arte, ele propõe exatamente repensar a necessidade de ‘sulear’ nossa forma de pensar o mundo, como nos ensinou o educador Paulo Freire. Cabe lembrar que o planeta Terra não possui nenhuma orientação definida. Este mapa do IBGE nos provoca a pensar: por que é convencional o Norte estar na parte superior? Essa não é uma reposta simples”, argumentam os pesquisadores.
Os membros da Associação de Geógrafas e Geógrafos Brasileiros citam duas desvantagens desse novo mapa do IBGE. “O primeiro é sobre a capacidade de entendimento do mapa por parte dos leitores, uma vez que estamos habituados com o Norte para cima e a Europa ao centro. Em segundo, precisamos lembrar que mapas são ‘ferramentas dotadas de poder e são capazes de (re)escrever ordens mundiais’, para citar o geógrafo Yves Lacoste. Assim, entendendo a capacidade discursiva dos mapas, algumas lideranças podem não gostar desta representação, exatamente por expressar uma crítica a esta história colonial que sentimos na América Latina e, em especial, no Brasil”, ponderaram.
De acordo com Lima e Carolina, todo mapa reflete o interesse político de seu mapeador. Eles destacaram que os mapas não são neutros, são fruto da conjuntura política, econômica e social. Além disso, ressaltaram que os mapas marcam interesses hegemônicos para dominação e exploração de nações e, atualmente estas “peças de linguagem” estão sendo utilizadas como instrumentos de luta e de transformação social, transformando o ato de simplesmente se localizar geograficamente, para se posicionar no mundo. “Dessa forma, fica evidente que o novo momento histórico que vivemos e a negação da ciência com afirmações terraplanistas e de ataque à soberania nacional fazem com que o IBGE posicione o Brasil como protagonista deste novo mundo.”